quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Batiſmo na igreja primitiva e ſua derivação

Duma discussão de Rosto livro:


[…T]emos muito pouca informação sobre a prática da igreja
primitiva, por óbvio que, perseguida e bem menos institucionalizada que
hoje, não pôde deixar tantos registros quanto nossa curiosidade
histórica desejaria. Mas há alguns elementos básicos, embora nenhum
seja conclusivo em si mesmo:


  • Antecedentes: o mais provável antecedente histórico para o batismo de
    João são as abluções de purificação do Velho testamento que o
    judaísmo intertestamentário aplicou especialmente à conversão; João
    batizar judeus teria então um signifcado coerente com o que o Novo
    testamento explicita, de símbolo externo duma mudança interna;
  • Forma: tanto as abluções acima referidas quanto os testemunhos
    históricos e arqueológicas (relatos, identidade entre piscinas
    batismais das sinagogas e primeiros templos cristãos) indicam imersão
    total ou quase, geralmente com o sujeito nu (no caso de mulheres, o
    rabino ou pastor ficava de costas, e outras mulheres, inclusive
    diaconisas, ajudavam). Os gregos, russos e afins (‘ortodoxos’,
    inconodúlios, que olham para Constantinopla) ainda praticam a
    imersão, ainda que de infantes;
  • Origem da deriva: logo os pais apostólicos, ou seja, os que
    conheceram os apóstolos e os sucederam em fins do século I e começo
    do II, já apresentam uma derivação para o legalismo em seus escritos,
    confirmada pelas liturgias para o batismo cada vez mais legalistas,
    incluindo jejum e exorcismo, o que obviamente não se podia aplicar a
    bebês;
  • Teologia: já no tempo de Tertuliano, fica claro que a teologia do
    batismo se tornara, digamos ‘materialista’ ou ex opere operato, no
    caso como um ritual eficaz para a lavagem do pecado original, o que
    hoje conhecemos como a heresia da regeneração batismal.
    Ironicamente, Tertuliano (III século) não combate o erro, mas o
    pressupõe e apenas alerta que o batismo infantil representava um
    risco para o batizado, que teria muita oportunidade de pecar pecados
    capitais até que a obra de santificação o protegesse do risco da
    apostasia. Ele parece indicar que essa prática era, então, uma
    novidade;
  • Contexto neotestamentário: Paulo faz uma analogia entre batismo e
    circuncisão, mas em momento algum coloca aquele como sucessor deste;
    pelo contrário, ele parece validar a continuidade da circuncisão
    entre os judeus cristãos, enquanto a combate para os gentios (que
    então tornar-se-iam judeus e obrigar-se-iam à lei judaica) e diz que
    todos, cristãos judeus e gentios, são um pelo batismo;
  • Argumento pelo silêncio: o fato de não haver menção clara a batismo
    infantil até o III século não prova nada tomado isoladamente, mas
    combinado a praticamente todas as menções neotestamentárias
    envolverem o ato de crer, e aos elementos acima, é historicamente
    significativo.
  • Coerência histórica: essa deriva não é estranha nem única. Harvard é
    de 1638, congregacional, mas no começo do XVIII já começou a sucumbir
    ao liberalismo e, no começo do XIX, ao unitarianismo. Das igrejas
    puritanas de Boston, na virada XVIII–XIX só uma permanecia
    trinitariana. E isso é só um exemplo entre tantos, haja visto o que
    mencionei sobre o legalismo dos pais apostólicos (I–II), o ritualismo
    em torno do batismo (III–IV) e a idéia de regeneração batismal
    (atestada no começo do III, provavelmente corrente já no II).
  • Multiplicidade de explicações teológicas: a teologia da aliança, como
    a conhecemos, embora tenha vários antecedentes nos pais e doutores,
    só aparece com Zuínglio respondendo aos anabatistas, que junto com
    Carlstadt levaram a lógica de Lutero e do próprio Zuínglio às últimas
    conseqüências. O livro _The fatal flaw of the theology of infant
    baptism_, de JOHNSON, Jeffrey (2010, Free grace press,
    https://jeff-johnson-byf2.squarespace.com/fatal-flaw), apesar do
    título polêmico, é razoavelmente irênico e, já no começo que está
    disponível como amostra no Kindle, levanta as várias explicações
    teológicas das várias tradições tanto dos vários ‘catolicismos’
    quanto das várias linhas da reforma magisterial. Essa é outra forma
    do argumento do silêncio, e creio que mais fraca que a anterior.

Um resumo um pouco tosco mas que vale pelas informações e referências é
o da Wikipédia inglesa.


Mas concordo que não é bom polemizar. Espero, sob melhor juízo, ter informado e não polemizado.

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Da falsamente aßim chamada arte

O título engana. Meu aßunto não é arte, mas artistas. Falsamente aßim chamados.

Foße eu exemplar, minha maior tristeza imediata seria a danação dos artistas inconversos. Mas sendo pecador, minha tristeza instantânea é sua superficialidade.

Sou dum tempo em que esquerdista que se prezaße lia. Já eram leituras ridículas — Marx, como qualquer não Reformado ao menos num sentido amplo em que incluo até Tomás de Aquino, CS Lewis e Ellul, não se pode levar completamente a sério — mas ao menos eram ideológicas, não sob-ideológicas como a atual frente ampla esquerdismo–gênero–academia–artesanato-de-segunda–ecoßentimentalismo.

Um artista que se prezaße até os anos oitenta ao menos teria ouvido falar, digamos, no Ellul de Les Nouveaux poßédés e no Raymond Aron de Lá Société ouverte & ses ennemis (sim, o Brasil era ainda algo francês) — obviamente nada mais substancial ou cristão como Lewis, Dooyewerd ou Schaeffer — e teria prontas respostas falsas, mas ao menos respostas, a seus principais argumentos. Hoje, alijaram-se da Grande tradição cristã, serrando seu próprio galho. Rumam à danação do mesmo modo se a Graça soberana não se dignar alcançá-los, mas fazem-no de modo inda mais ridículo.

domingo, 21 de maio de 2017

Discussão num grupo de Facebook

Resposta a um crente que questionou se eu achava que precisava concordar comigo para ser salvo, ou se precisava usar uma determinada versão bíblica, ou algo assim. Infelizmente perdi a referência, o grupo foi arquivado e não acho mais a pergunta exata.

Claro que não. A Escritura e o Espírito, aplicando a Escritura ao coração (e mente) dos eleitos, é suficiente.

O que acontece é que nenhuma linha teológica é dona da verdade. Somos salvos pela graça; se fôssemos salvos por aderirmos à doutrina perfeita, estaríamos danados.

E, em Sua soberania, muitas vezes Deus aponta irmãos de quem discordamos, e até incrédulos, para nos ensinarem algo.

Você pode até discordar, mas faça-o com respeito. Ultimamente os moderadores temos tido de fechar algumas discussões infrutíferas, e até excluir alguns irmãos, não porque discordemos mas porque temos de preservar a paz no grupo.

Agora, qual o problema com Flávio Josefo? Ninguém vai dizer sequer que ele fosse cristão (um ou outro trecho onde ele parece cristão são mais provavelmente adições polemizadoras posteriores), muito menos que tudo o que ele escreveu fosse correto. E ele é importante para a história, não para a doutrina. Se formos excluir de nossas leituras nada que não seja cristão e calvinista, seremos bem ignorantes.

Eu peço também que você se informe melhor. Me corrija se eu estiver errado, mas me parece que você está confundindo alta crítica com crítica textual. A alta crítica todos aqui, em princípio, rejeitam, ou ao menos seu uso para tentar diminuir a autoridade das Escrituras; já crítica textual, quem diz que não faz ou é ignorante ou desonesto. Uma vez que não temos os autógrafos, é impossível publicar uma Bíblia sem comparar manuscritos, até porque não há dois manuscritos iguais, e nenhum que não tenha óbvios erros de copistas. Mesmo o Textus receptus teve múltiplas edições, cada uma corrigindo erros das anteriores baseando-se em mais manuscritos ou melhor entendimento dos manuscritos antes já disponíveis: isso é o que se chama de crítica textual.

Você pode até preferir o texto bizantino, ou o majoritário, ou o recebido, mas não tem como escapar da crítica textual.

Outro ponto onde você parece não saber do que fala é ao mencionar crítica contextual histórica gramatical. Contextualização, história e gramática são obviamente fundamentais tanto para a crítica textual quanto, principalmente, para primeiro tradução e depois exegese. Aliás, o método histórico-gramatical é o principal método exegético desde a Reforma; a recente ênfase em contextualização é apenas uma ênfase maior no aspecto histórico, até para esclarecer coisas que a gramática sozinha não dá conta.

terça-feira, 9 de maio de 2017

Versões da Bíblia em português do Brasil

A XXI (Almeida século 21, da Vida Nova) foi feita basicamente pela mesma equipe da NVI, inclusive sob a liderança do Saião. Quanto aos textos usados, idem: como na NVI, eles usam a base crítica mas, diferentemente da NIV, preservam os acréscimos posteriores presentes nos manuscritos tardios que fundamentaram o Textus receptus. Essa é uma razão pela qual as críticas da Trinitariana e vários outros adeptos do texto bizantino são desonestas.

Quanto à linguagem, a XXI começou como um projeto modesto para eliminar os arcaísmos restantes na Revisada (equivalentes aos da Atualizada, mas incorrendo em menos interpretações que esta), mas acabou se percebendo que o que mais prejudicava a compreensão da Almeida não era vocabulário, mas as ordens de frase atípicas do português por importação direta do grego, hebraico e aramaico, mais influência latina. Assim, colocaram-se as frases em ordem direta, o que reproduz mais fielmente o nível de linguagem dos originais. Assim, temos a precisão da linguagem castiça da Almeida (uso de todos os tempos e pessoas verbais, por exemplo, em vez de se limitar ao coloquialismo brasileiro da NVI), sem arcaísmos, helenismos e hebraísmos.

Em relação à Atualizada, além de usar a ordem natural portuguesa, ela preserva a prosódia brasileira, talvez exageradamente ao conformar-se ao proclítico, eliminando muitas ênclises e mesóclises em favor de construções mais longas — por exemplo, ‘vou te atacar’ em vez de ‘ferir-te-ei’ — o uso do verbo atacar em lugar de ferir é louvável, por reproduzir melhor o significado do original, mas o ‘eu vou te‘ em vez da mesóclise talvez seja coloquial demais; o uso de um proclítico com o verbo flexionado no futuro, apesar de mais incorreto gramaticalmente, fosse mais elegante: ‘te atacarei’.

Em relação à NVI a XXI, além de preservar o nível de linguagem da Almeida, é um trabalho em curso, sofrendo as revisões necessárias pela crítica da igreja, enquanto a NVI ficou estagnada porque a Zondervan estancou com o encalhe da primeira edição, que ficara conhecida como ‘a Bíblia do Caio Fábio’. A desvantagem é que reverteu aos versículos, enquanto a NVI já adotara os parágrafos.

NVI, NVT e a nova Atualizada não são português, mas ‘crentês’: contrariamente ao uso universal da segunda pessoa do singular como forma íntima de tratamento (‘tu’ em português e francês, Du em alemão, thou em inglês), essas versões macaqueam o uso ‘crente’ do ‘tu’ nas orações a Deus, este calcado na familiaridade com a Revista e Corrigida, e usam o respeitoso ‘você’ em geral, reservando o ‘tu’ para dirigir-se a Deus. Uma Bíblia só para crentes velhos, não para o povo, e que preserva a incapacidade dos crentes (e até dos pregadores!) atuais de usarem com domínio o registro de linguagem que almejam.